domingo, 19 de janeiro de 2020

CANÇÃO DA VIDA PROFUNDA - Porfírio Barba Jacob

Tradução de Abgar Renault
...................
Há dias em que somos tão móveis, tão móveis
tal breve paina solta aos ventos e ao azar.
Talvez sob outro céu a glória nos sorria.
Clara, undívaga, aberta é a vida como um mar.

E há dias em que somos férteis, e tão férteis
como o campo, em abril, que treme de paixão:
sob o próvido influxo de chuva interior
da alma brotam em nós florestas de ilusão.

E há dias em que nós — tão sórdidos, tão sórdidos! —
somos a entranha de obscuro pedernal:
surpreendem-nos da noite as numerosas lâmpadas,
com moedas rútilas taxando o Bem e o Mal.

E há noites em que somos plácidos, tão plácidos...
(meninice do poente! ah! lagoas de anil!)
que um verso, um trino, um monte, um pássaro que cruza,
as nossas próprias penas nos fazem sorrir.

E há dias em que somos lúbricos, tão lúbricos,
que nos depara em vão sua carne a mulher;
depois de acariciarmos um quadril e um seio,
à redondez de um fruto eis-nos a estremecer...

Nenhum comentário:

Postar um comentário