quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

DOIS SONETOS – Mário Cabral

 

DESOLAÇÃO

Depois de longa estrada, chego, aflito,
ao marco zero do passar das horas.
Não mais desejos, ideais, amores,
hinos e flores pelo meu caminho.

Logo se foram crenças, fantasias,
o sentido falaz da vida alegre.
E dentro de mim, cresceu, dilacerante,
A dor que me sufoca e me redime.

Não renego o que fiz e o que já disse,
talvez pelo saber, talvez loucura,
farrapo só de sonho ou de quimera.

E agora, já sem tempo e nada além,
só desejo abraçar meus pais que dormem
e ao lado deles descansar também.
......
O MORTO

Eu vi o morto, ali, perdido e só.
Pareceu-me mais velho, mais sofrido,
a flacidez do rosto, resvalando,
para cima do peito, ossudo e cavo.

O tom do lábio roxo, dividido,
em leve corte de buril no gesso.
E a nesga triste desse olhar de vidro
à face dava um certo esgar de medo.

E a lividez... E a melena escassa
– raros fios de giz em vã memória –
era a visão da morte em novo espanto.

Nada mais a fazer... O céu fugia...
E na boca da tumba foi lançada
pesada pá de terra, escura e fria...

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