sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

CLAMOR - Valdeci Ferraz (poema escrito em 24.12.2020)



“Existe um povo que a bandeira empresta
Para encobrir tanta infâmia e covardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio, musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...”

(Castro Alves, O Navio Negreiro, estrofe VI)

..........
À deriva segue o navio sobre ondas traiçoeiras
Abutres pairam no ar à espera da morte
Dos portos abandonados erguem-se velhas bandeiras
Puídas pelo vento, jogadas à sua sorte.
No tombadilho celebram os ladrões de ostras
Ao som de Wagner e bebendo cerveja
Nos porões escuros as chagas à mostra
Dos pobres viventes na infame peleja.

Um sonho dantesco, a fria sepultura,
Para embalsamar os que partem sem despedida,
Um mar aberto na boca da noite escura
Um céu de cinzas a entristecer a vida.
Meu Deus! Meu Deus! Que voz é esta?
Que à infâmia e ao medo silencia?
Que compartilha orgulhosa dessa festa
E do povo brasileiro cruelmente tripudia.

Meu Deus! Meu Deus! Por que te ocultas?
Não ouves o clamor das madrugadas?
Não ouves o matraquear das catapultas
A jogar nas valas vidas tão amadas?
Até quando? Oh céus! Oh céus!
Até quando?
Indaga um povo espantado, machucado e sofrido
Perfaz-se concreto e cruel tal desmando
Redunda no ar permanente gemido?
Até quando? Até quando?
...

Quantas orações, quantas lágrimas, quantas sepulturas serão necessárias para saciar a fome de poder e a ganância dos encastelados? Até as pedras clamam por um gesto, um abraço, um afago. Até quando oscilará sobre nossas cabeças a espada de Dâmocles, pela omissão dos lunáticos, pela omissão dos atalaias?
Até as nuvens, o vento, as matas clamam por socorro! Onde estão os caçadores de votos? Cadê as mulheres de Tejucupapo? Por que se calam os justos? Na fortaleza da minha solidão assisto a destruição dos sonhos, pela janela luminosa uma nuvem negra invade todos os cômodos e ouço, angustiado, a risada de um fanático. Vejo nas suas mãos uma metralhadora e ao seu redor um bando de abutres. 

Até quando? 

Até quando?

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