sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

HOMENAGEM AO POETA THIAGO DE MELLO

 

30/03/1926 - 14/01/2022
......
ESTATUTO DO HOMEM

Artigo Primeiro
Fica decretado que agora vale a verdade.
Agora vale a vida, e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo Segundo
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo Terceiro
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito a abrir-se
dentro da sombra; e que as janelas devem
permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde
onde cresce a esperança.

Artigo Quarto
Fica decretado que o homem não precisará
nunca mais duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem como
a palmeira confia no vento, como o vento
confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.
PARÁGRAFO ÚNICO
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo Quinto
Fica decretado que os homens estão livres
do jugo da mentira. Nunca mais será preciso
usar a couraça do silêncio nem a armadura
de palavras. O homem se sentará à mesa com
seu olhar limpo porque a verdade passará a
ser servida antes da sobremesa.

Artigo Sexto
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre não poder dar-se amor
a quem se ama e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo Sétimo
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor da ternura.

Artigo Oitavo
Fica permitido a qualquer pessoa,
A qualquer hora da vida, o uso do traje branco.

Artigo Nono
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo, muito mais belo
que a estrela da manhã.

Artigo Décimo
Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido, tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela.
PARÁGRAFO ÚNICO
Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.

Artigo Décimo-Primeiro
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande
baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada
fraternal para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso e das bocas.
A partir deste instante a liberdade será algo vivo
e transparente como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre o coração do homem.
......
FAZ ESCURO MAS EU CANTO

Faz escuro mas eu canto,
porque a manhã vai chegar.
Vem ver comigo, companheiro,
a cor do mundo mudar.
Vale a pena não dormir para esperar
a cor do mundo mudar.
Já é madrugada,
vem o sol, quero alegria,
que é para esquecer o que eu sofria.
Quem sofre fica acordado
defendendo o coração.
Vamos juntos, multidão,
trabalhar pela alegria,
amanhã é um novo dia.
......
A ROSA BRANCA

Não me inquieta se o caminho
que me coube - por secreto
desígnio - jamais floresce.
Dentro de mim, sei que existe,
oculta, uma rosa branca.
Incólume rosa. E branca.

Não pude colhê-la: mal
nascera e logo perdi-me
nos labirintos do tempo,
onde desde então pervago
apenas entressonhando
aquilo que sou - e vive
no recôncavo da rosa.

Sem conhecer-me, padeço
o mistério de existir
em amargo desencontro
comigo mesmo. No entanto,
pesar tão largo se apaga
quando pressinto: na rosa,
mistério não há. Nenhum.
Sem medo de trair-me a face,
posso morrer amanhã.
Extinto o jugo do tempo,
olhos nem boca haverá
- para a queixa e para a lágrima -
se em vez de rosa, de pétala
cinza de pétala, apenas
existir a escuridão.
O vazio. Nada mais.
......
ARTE DE AMAR

Não faço poemas como quem chora,
nem faço versos como quem morre.
Quem teve esse gosto foi o bardo Bandeira
quando muito moço; achava que tinha
os dias contados pela tísica
e até se acanhava de namorar.

Faço poemas como quem faz amor.
É a mesma luta suave e desvairada
enquanto a rosa orvalhada
se vai entreabrindo devagar.
A gente nem se dá conta, até acha bom,
o imenso trabalho que amor dá para fazer.

Perdão, amor não se faz.
Quando muito, se desfaz.
Fazer amor é um dizer
(a metáfora é falaz)
de quem pretende vestir
com roupa austera a beleza
do corpo da primavera.
O verbo exato é foder.
A palavra fica nua
para todo mundo ver
o corpo amante cantando
a glória do seu poder

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