quarta-feira, 23 de março de 2022

POEMAS de Kátia Borges

 

EFÍGIE

Costura o sol no peito
pela parte de dentro
da blusa, como se efígie
reversa, o ano inteiro,
e no lado inverso escreve chuva.

Subverte as estações
por dentro e, no inverno,
orquestra flores,
enquanto o outono ainda
desfolha-se,
costura o sol no peito.
......................
HOMEM

Meu homem chega cansado.
O suor grudado na pele.
E eu, que o imagino calmo, me deito,
rosto contra o travesseiro -
e aguardo.
Ele deita seu peso sobre meu corpo,
e seu cheiro é forte,
como o de um cavalo.
Sinto seu hálito no meu pescoço,
suas pernas forçando passagem
entre minhas pernas.
O amor não tem rosto, penso.
É essa pressão - pele contra pele
- esse atrito de pelos.
Quero dormir e sonhar que nos amamos.
E antes de me possuir, ele me despe, delicado.
Quero dormir e sonhar que ele chega.
Só em sonho, posso tê-lo sem fúria.
...............
AUTOFICÇÃO

A moça amarga ainda sonha
flores em datas festivas,
talvez gérberas,
sussurra em voz alta,
falsamente distraída, talvez,
na correspondência incompleta,
achem por descuido a pétala
esquecida de alguma efeméride,
que nem alegria (veja bem)
nem alegria trouxe
(anêmonas talvez).

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