sexta-feira, 1 de abril de 2022

O NARRADOR – Yuri Pires

Da lasca do tempo que herdei,
etiqueto o mundo:

digo pedra a pedra, digo chão o chão,
digo brisa a brisa, digo carne a carne,
digo faca a faca, digo sangue o sangue
e assim por diante e diante.

Narro o ato a partir do nome
dado a cada algo recortado
no quadro divisado pelos olhos
carregados e pesados de todo
o visto e vivido e passado;

não digo fome, digo resto digo esquálido,
não digo amor, digo gozo digo esteio,
não digo medo, digo mordaça digo túmulo,
não digo ódio, digo tortura digo punhal.

Narrar é tudo: fazer verdade
da mentira inquestionável a
partir do presente do indicativo
das manchetes de jornal:
o cisco transmuta-se trave
a trave transmuta-se viga
a viga transmuta-se barra
ao sabor da pujança adjetiva;

e, no entanto, dizer é pouco, pois
se digo chão o sangue, o sangue não é chão,
se digo pedra a faca, a faca não é pedra,
se digo brisa a carne, a carne não é brisa:
uma hora ou outra se evidencia
a fraude, a farsa, a força
da ilusão tão fraca.

O problema não é dar a ver o que ninguém percebe,
mas apontar diuturnamente
para o que, de tão visto,
tornou-se invisível e
de novo fazê-lo evidente.

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