quarta-feira, 13 de abril de 2022

DESVIO – Danielle Magalhães

 

tenho conseguido fugir um pouco
de tudo só para doer menos
mas vez ou outra me pego
na voz metálica da vizinha
brigando com os gatos
ou falando da buceta fedida
no verão vez ou outra
preciso me lembrar de fazer amor
como se não houvesse baratas
me pego na lente da câmera
da mulher que não consegue
tirar fotos na síria
mas ainda assim tira
vez ou outra
me pego fugindo
da bola
nos jogos da escola
ou sendo atingida por uma
no peito
no meio da rua
como quando eu tinha 4 anos
meu pai saiu armado
para brigar
até hoje eu continuo com medo
de bola e de bala
vez ou outra
me pego no cano
do revólver do meu pai
errando o caminho
da fuga só para não parar
em algum lugar do abdômen
da minha mãe
que dói mais que
a bola no meu peito
e talvez mais que a bala
que continua perdida
vez ou outra me pego
atravessando
a mira que meu pai errou
e paro no buraco
que a bala acertou
em seu corpo
como tudo que vai
e volta vez ou outra
eu me pego
fugindo um pouco de tudo
mas às vezes
eu saio de triagem
e paro lá no fundo
da imundície do metrô
até chegar na glória
desejando ser comida
como a bala
que você mastiga
há meia hora
debaixo do chão
sem pensar no gosto
que é viver permanentemente
na dor
às vezes só nesse momento
me sinto doer menos

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