terça-feira, 18 de agosto de 2020

CARTA AO TEMPO – Claribel Alegria


Tradução de Pedro Fernandes
...........
Estimado senhor:
Escrevo esta carta em meu aniversário.
Recebi seu presente. Não gostei.
Sempre e sempre o mesmo.
Quando criança, impaciente o esperava;
vestia-me de festa
e saía à rua a anunciá-lo.
Não seja tenaz.
Todavia o vejo
jogando xadrez com o avô.
No início eram esparsas suas visitas;
logo se tornaram cotidianas,
e a voz do céu
foi perdendo seu brilho.
E você insistia
e não respeitava a humildade
de seu doce caráter
e seus sapatos.
Depois me cortejava.
Era eu adolescente
e você com esse rosto que não muda.
Amigo de meu pai
para ganhar a mim.
Pobrezinho do avô!
Em seu leito de morte
você estava presente,
esperando o fim.
Um ar insuspeito
flutuava entre a mobília.
Pareciam mais brancas as paredes.
E havia alguém mais;
você fazia sinais.
Fechou os olhos do avô
e se deteve um instante a me contemplar.
Proíbo-lhe que volte.
Cada vez que o vejo
corre-me pela espinha um frio.
Não me persiga mais,
suplico-lhe.
Há anos que amo outro,
e já não me interessam suas oferendas.
Por que me espera sempre nas vitrines,
na boca do sonho,
sob o céu indeciso do domingo?
Conheça sua saudação cerrada.
Eu o vi outro dia com as crianças.
Reconheci seu traje:
o mesmo tweed de sempre
quando eu era estudante
e você amigo de meu pai:
seu ridículo traje de entretempo.
Não volte,
Repito.
Não se fique mais em meu jardim.
Assustará as crianças
e as folhas caem:
Eu vi.
De que serve tudo isso?
Se vai rir um pouco
com esse riso eterno
e seguirá vindo ao meu encontro.
Os meninos,
meu rosto,
as folhas,
tudo extraviado em suas pupilas.
Ganhará sem remédio.
Ao começar minha carta já sabia.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário