quarta-feira, 14 de julho de 2021

TRÊS SONETOS – Glauco Mattoso

SONETO NATAL

Nasci glaucomatoso, não poeta.
Poeta me tornei pela revolta
que contra o mundo a língua suja solta
e a vida como báratro interpreta.

Bastardo como bardo, minha meta
jamais foi ao guru servir de escolta
nem crer que do Messias venha a volta,
mas sim invectivar tudo o que veta.

Compenso o que no abuso se me impôs
(pedal humilhação) com meu fetiche,
lambendo, por debaixo, os pés do algoz.

Mas não compenso, nem que o gozo esguiche,
masoca, esta cegueira, e meus pornôs
poemas de Bocage são pastiche.
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SONETO ASTROLÓGICO

No azar do tempo, câncer é meu signo.
Meu ascendente é sina, com certeza.
As cartas, já marcadas, sobre a mesa
só rezam que ao destino me resigno.

Como estigmatizado, me persigno.
Meu mapa astral não dá qualquer defesa.
Ser pato no zodíaco é dureza.
Se feio, então, não tem futuro digno.

Na tal constelação do Caranguejo
está um buraco negro gigantesco,
origem do glaucoma malfazejo.

Só mesmo um cosmo novo, ainda fresco,
reserva-me outra vida que, antevejo,
será sob um horóscopo momesco...
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SONETO CONSOLO

Não sou leproso, aidético ou capado.
Não sofro de impotência ou alergia.
Não cago sete vezes num só dia,
nem passo todo o mês sem ter cagado.

Não quero ser chamado de viado,
mas vejo a viadagem sem fobia.
Pó, pedra, pico ou gás não me vicia.
Jamais fumei sequer um baseado.

Mas, em compensação, lembro do olhar
de quem se foi, e à noite não sossego,
tentando com as trevas não sonhar.

Quanto mais vivo, à vida mais me apego.
Enfim, não sou tão vítima do azar:
só sou glaucomatoso e fiquei cego.

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