sábado, 10 de julho de 2021

DOIS POEMAS – Álvaro Alves de Faria

 

PRATICIDADE

Abro o guarda-chuva japonês
cinza
em cima da minha cabeça
e caminho em direção ao banco.

Pagarei minhas contas
olharei os olhos vermelhos
da moça do caixa
e observarei suas unhas claras.

Conversarei com outros clientes
sobre a vida
e direi que o governo é culpado de tudo.

Nunca mais esquecerei
esta mulher de boca acesa
na fila
atrás de mim.

Sairei depois à rua
e me sentirei um magnata
fora do tempo.

Encontrarei à manhã
vizinhos tristes
e direi palavras desnecessárias.

Enfim
sou um homem prático.

Já posso matar-me sem remorso.

.......................
ESTAR

Esferográficas cortam palavras
no céu da boca, como facas:
assim, letras inertes cedem ao tempo
e calam sílabas agudas.

Pouco áspero
será o gomo de teu verso,
esse avesso do gesto,
a poesia na xícara de veneno.

Pouco o nítido sentir
o líquido
de teu pressentimento
como se fosse possível
calar para sempre.

Nada senão a gilete enfiada na pele,
a face neutra do olhar enfermo:
enfim a planta na raiz de teu pomar,
enfim
o fim da espera, do estar.

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