quinta-feira, 30 de setembro de 2021

ODE AOS MEUS PÉS - Sérgio de Sersank

 

(Relembranças)
Nesta noite em que me via mais só do que nunca
em que nem a música do rádio
a paz da lua cheia
ou as estrelas no céu sem nuvens
afastavam-me a melancolia -
esse gosto de licor amargo
que sempre quis evitar -
deixei a janela de vidro
sentei-me no leito hospitalar
e estou a tocar, agora, os meus pés.
Dão-me notícias
de dias há muito arrancados
ao calendário dos anos:
trilhas
pastos plantações pomares
estradas boiadeiras
vendas vales valetas
pontes e rios.
Recordam-me esquinas cobertas de grama
peladas de futebol
pedras e chinelos demarcando
limites ao gol.
Dias de pipas ao vento
bola a doer nas queimadas
pulos de amarelinhas
batidas de bets
partidas de bochas
jogos de malhas nas ruas vermelhas.
Velhos e sofridos pés.
Lembram-me a escola primária -
o edifício amarelado
de muros altos que não me continham
e onde a “Cartilha Suave”
do ler e escrever descortinou-me o mundo.
Saudade: aquelas manhãs de frio
o leite quente em casa
o pão de forno caseiro.
As aulas de Dona Filinha
inesquecível amiga:
ela toda atenção e carinho
e sempre um moleque ou outro
na sala querendo briga.
Enquanto corríamos doidos
os meninos
no recreio
ouvia a cantiga no pátio:
“Ciranda, cirandinha,
vamos todos cirandar
vamos dar a meia volta
volta e meia vamos dar.”
......
Ventura tocá-los ainda.
Estes pés rebeldes
cansados
Devolvem-me
aquela magia
de viver sem pressa.
......
À luz de um poste fraquinha
ouço meninas e meninos.
Tento revê-los, um a um,
nos toscos bancos de madeira
os pés se tocando,
a empurrões e risadas.
Noites de lua (folguedos):
passa-anel
rei-rainha
pique-salva
garrafão.
Noites escuras e frias (o medo):
Tempos de afrontamento
às almas penadas das ruas.
Eu e outros deles contando
causos de assombração.
.......
Perdi como perdemos
ao calendário dos anos
a infância
aquelas tardes de chuva fina molhando a roupa
seus dias plenos de sol.
.......
Meus pés. Estes pés. Tentativas
nem sempre bem sucedidas
de varar o pano dos circos.
Entradas triunfais no salão do cinema.
Passos a dois no primeiro namoro.
Passeios na praça da Igreja.
Estes mesmos pés no trabalho duro
mal remunerado
e em fuga da escola.
Meses de vadiagem
dificuldades sem fim.
O filho do sapateiro,
queria ganhar o mundo
e o tempo a girar continuamente
na ampulheta dos dias
fazia-o pescador que volta
sem peixe, ao cair das tardes.
Vieram lutas e lutas
ao longo da trajetória.
Um casamento acabou-se
ainda na mocidade.
O outro consolidado
na madureza, perdura.
Filhos nasceram, cresceram
e - partes dessa aventura -
deram-me netos, abriram
outros, melhores destinos.
Sabem estes pés
de envelhecidos sonhos
do menino que sou.
Agora -
chegada a vez de transpassar
a nebulosa ponte
que de tudo nos separa -
certo estou de retomar roteiros
em que não mais me serão necessários
e assim como de tudo me despeço
digo adeus aos meus pés.
Devo-lhes muito.
Sangrando nas sendas de pedra
trouxeram-me ao tempo
que ansiava viver.
Afastam-me agora a tristeza.
Dão-me a certeza
de que sob as asas da alma
Não param. Não podem parar.
Aos píncaros mais altos da existência humana
meus pés
meus velhos, sofridos pés,
hão de, por certo, chegar.

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