quinta-feira, 23 de setembro de 2021

POEMAS – Alcides Villaça

 

VIAGEM ANTIGA

Havia vezes eu me via
como um menino não se vê.
A água na nuvem se adivinha,
a sede vem antes de sua vez.

Havia vezes eu me renascia
sem nunca ter saído além de mim:
emprestava-me espelhos e outras vias
de ver tocar sentir o fundo o si.

Era um segundo inteiro ou todo um dia
quando lançava o olhar além de mim
e me via em tudo o que não via?
Que trem cortava o tempo desse abril?

Em que viagem eu era o meu caminho?
Às vezes os meninos pousam olhos
no fim das paralelas, e descansam
o corpo de seus pesos e medidas.

Se nesta noite fixo a luz da esquina
e torno lento o sangue em seu caminho,
nem sombra apanho da viagem antiga
que, quando eu não queria, me fazia.
...............
A COSTUREIRA

Que me quer a memória, a costureira?
Vale-se de meus dedos para sonhar,
e quando acordo mal me vejo.

Que me quer com retalhos
de um manto que nunca usei?
Vale-se de meu sonho para o trajar.

Quem pula em meu quintal às horas mortas
e me põe trêmula ogiva sob a pálpebra,
coração de um azul que não pedi?

Quem se finge morrer, para cerzir
na sombra a própria sombra - e some
à prima luz?

Quem costura alta noite, quem pedala
as correias à ré, e me abandona
às figuras de gelo?

A costureira com seus figurinos
volta páginas e páginas, num contínuo
desfile de moldes agulhados.

Que me quer a mulher? Gargareje
seus préstimos, quando queira,
só não me assalte o escasso tempo

que me costuro eu mesmo enquanto esqueço
o som da máquina extinta, e me recreio
com o corpo que tenho e o sopro ausente.

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