domingo, 26 de setembro de 2021

QUATRO POEMAS – Charles Baudelaire

 

Tradução de Ivan Junqueira
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HARMONIA DA TARDE

Chegado é o tempo em que, vibrando o caule virgem,
Cada flor se evapora igual a um incensório;
Sons e perfumes pulsam no ar quase incorpóreo;
Melancólica valsa e lânguida vertigem!

Cada flor se evapora igual a um incensório;
Fremem violinos como fibras que se afligem;
Melancólica valsa e lânguida vertigem!
É triste e belo o céu como um grande oratório.

Fremem violinos como fibras que se afligem,
Almas ternas que odeiam o nada vasto e inglório!
É triste e belo o céu como um grande oratório;
O sol se afoga em ondas que de sangue o tingem.

Almas ternas que odeiam o Nada vasto e inglório
Recolhem do passado as ilusões que o fingem!
O sol se afoga agora em ondas que de sangue o tingem...
Fulge a tua lembrança em mim qual ostensório!
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LEMBRANÇAS

Tenho mais lembranças que se tivesse mil anos.
Uma grande cômoda cheia de balanços,
De versos, cartas de amor, processos, romances,
Com grossos cachos de cabelo entre quitanças,
Guarda menos segredos que meu triste crânio.
É uma pirâmide, um imenso sepulcro,
Que contém mais mortos do que a fossa comum.
– Eu sou um cemitério odiado da lua,
Onde como remorsos se arrastam os vermes
Que perseguem sempre os meus mortos mais queridos.
Sou um toucador cheio de rosas fanadas,
Onde jaz miscelânea de modas passadas,
Onde os pastéis plangentes e os Boucher aguados,
Sós, respiram o odor de um frasco destampado.

Nada iguala em tamanho os claudicantes dias,
Quando, sob os densos flocos das invernias
O tédio, fruto da triste incuriosidade,
Assume as proporções da imortalidade.
– Doravante tu não és mais, ó matéria viva!
Que um granito cercado de um vago pavor,
A dormir nos confins de um Saara brumoso;
Velha esfinge ignorada do mundo leviano,
Esquecida no mapa, e cujo humor cabreiro
Canta apenas aos raios do sol que se deita.
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A DESTRUIÇÃO

Sem cessar a meu lado se agita o Demônio;
Nada à minha volta como um ar impalpável;
Eu o engulo e sinto que me queima o pulmão
E o preenche de um desejo eterno e culpável.

Toma às vezes, conhecendo meu amor da Arte,
A forma da mais sedutora das mulheres,
E, sob especiosos pretextos de rufião,
Acostuma meus lábios a filtros infames.

Ele me leva assim, longe do olhar de Deus,
Ofegante e morto de cansaço, até o meio
Dos campos do Tédio, profundos e desertos,

E lança em meus olhos cheios de confusão
Vestimentas imundas, feridas abertas,
E a aparelhagem sangrenta da Destruição!
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AS QUEIXAS DE UM ÍCARO

Os amantes das prostitutas
São felizes, dispostos, fartos;
Quanto a mim, fraturei os braços
Por haver abraçado nuvens.

É graças a astros sem igual,
Que nos confins do céu flamejam,
Que meus olhos depauperados
Só veem recordações de sóis.

Inutilmente eu quis do espaço
Localizar o fim e o meio;
Sob não sei que olho de fogo
Sinto minha asa que se parte;

E a queimar por amor ao belo,
Não terei a honra sublime
De dar o meu nome ao abismo
Que me servirá de jazigo.

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