sábado, 24 de outubro de 2020

LUTA – Valdeci Ferraz

 

O que deixarei como legado?
As namoradas que me ajudaram
a esculpir um diamante cor de rosa
terão preservado a lubricidade
das minhas palavras?

O homem do meu tempo terá absorvido
o veneno dos meus versos
ou haverá de se prostrar diante do meu túmulo
em busca de um antídoto?
Desenterraram Buda, Marx,
trouxeram de volta o cristo Jesus,
transformaram em mercadoria
o brilho dos seus cérebros
e os mercadores do templo se proclamaram deuses.

Embora incendiários ocultos
insistissem em queimar as florestas.
dia após dia joguei sementes no ar
na esperança de que os pássaros solitários
semeassem a esperança.

Os falsos ceifadores podaram os sonhos,
entregando algemas como prêmio
pela cumplicidade do silêncio,
mas os beija-flores continuaram pairados no ar,
paralisados pelo encanto das flores.

E os versos dos poetas, flores vivas,
paralisaram os paquidermes,
enfeitiçaram as medusas,
derrubaram muros e castelos.

O que deixarei como legado?
Quando menino tinha uma máscara no rosto,
uma espada na mão,
era o corajoso vingador, paladino da justiça.
Hoje, adulto, mascarado pela rua,
verme com medo de outro verme,
vejo a verve dos homens minguando
como uma fonte no deserto.

Do alto dos meus setenta anos contemplo a estrada
cujas margens estão repletas de casas fechadas
e árvores decepadas pelas mãos
dos plantadores de ilusões.

Talvez as minhas palavras se dissolvam
sob a chuva negra gerada pelas mentes obtusas
dos que se dizem amantes da humanidade
e ordenam a destruição dos que ousam reclamar,
talvez o meu túmulo seja violado
e arrancado da terra um coração
que teima em pulsar em forma de versos,
e o meu legado seja apenas
o eco de um grito desesperado
na imensidão do mar.

Mas o eco do primeiro choro
se juntará ao eco do último grito
e as casas fechadas abrirão suas portas
As sementes mesmo na terra negra da chuva
hão de germinar e novas árvores voltarão a crescer.

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