domingo, 2 de novembro de 2014

Sobre a poesia - Juan Gélman

Tradução de Léo Gonçalves

haveria um par de coisas por dizer/
que não é muito lida por ninguém/
que esses ninguém são poucos/
que estão todos preocupados com a crise mundial/ e

com o assunto de comer a cada dia/ trata-se
de um assunto importante/ eu me lembro
quando tio joão morreu de fome/
dizia que nem se lembrava de comer e
que pra ele  não tinha problema/

problema veio foi depois/
não havia dinheiro para comprar caixão/
e quando finalmente o caminhão municipal
passou para levá-lo/
tio joão parecia um passarinho/

o pessoal do caminhão olhou para ele
com desprezo e com desdém/
murmuravam/
que eram sempre molestados/
que sendo gente eles enterravam gente/ e não
passarinhos como tio joão/ especialmente

porque o tio foi cantando piu piu
a viagem inteira até o crematório municipal/
e sentiram-se desrespeitados e estavam muito ofendidos/
e quando davam-lhe um tapinha pra calar a boca/
o piu piu voava pela cabine do caminhão
e eles sentiam que ouviam um piu
piu na cabeça/ tio

joão era assim/ adorava cantar/
e não via por quê não cantar depois de morto/
foi para o forno cantando
piu piu/ as cinzas saíram e ainda deram uns
pios/
os companheiros do municipal se entreolharam
com os sapatos cinzentos de
vergonha/ bem mas

voltando à poesia/
os poetas passam muita dificuldade/
não são muito lidos por ninguém/
esses ninguém são poucos/
o ofício perdeu o prestígio/
para o poeta está cada dia mais difícil

conquistar uma linda namorada/
ser candidato a presidente/ ser patrocinado por um mecena/
que um guerreiro faça façanhas para serem cantadas/
que um rei lhe pague cada
verso com três moedas de ouro/

e não se sabe se é porque acabaram as namoradas/
os mecenas/ os
guerreiros/ os reis/
ou simplesmente os poetas/
ou foram as duas coisas e é inútil
esquentar a cabeça com uma coisa dessas/

bonito é saber que a gente pode cantar piu piu
nas horas mais estranhas/
tio joão depois de morto/ eu agora
para que me queiras/

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