sábado, 24 de agosto de 2019

Três poemas de Ewaldo Schleder Filho

VIGÍLIA

As paredes do cárcere
ouvem só a sua voz.
E seus ouvidos,
só as saudações:
bom dia, presidente,
boa tarde, presidente,
boa noite, presidente.

Ao longe, gritos da cidade,
brados dos desalmados
estrangulam a noite.
O silêncio dos famintos
a querer pão e trabalho
desafinam a trilha do dia.

A feira está às moscas,
as mãos, vazias
A fábrica, lacrada e sombria.
Surda é a voz do mercado.
E crônica a fome, a sede, o medo.
* * *
MORREU UM PRETO

oitenta cartuchos
oitenta tubos ocos
oitenta queimas de pólvora
oitenta projéteis
balas de chumbo
oitenta carregamentos
oitenta disparos
oitenta espoletas
oitenta balaços

que fosse um só tiro
fossem oito ou oitocentos
mas foram oitenta
para matar oitenta pessoas
e matou uma e matou tantas
o morto era a vítima
do sorteio de balas
alvo por acaso
mas era preto
* * *
PÁTRIA ARMADA

Brasileiro senta a pua
não deixa baixar o pavio
apanha em casa e na rua
todas as flores de abril

Do mágico olho da grua
à carne de Chernobyl
fome: verdade crua
a bordo do mesmo navio

Cabrália: uma índia nada nua
verde amarelo branco anil
tucanos gralhas cacatuas
festa pátria mãe gentil

Com tanta gente que amua
quartos de milha, quartos de mil
antes o mundo da lua
do que a órbita desse Brasil.

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