quinta-feira, 24 de julho de 2014

Loucura - Valdeci Ferraz


 (in POETAS DA IDADE URBANA, Ed. do Autor, Recife, 2013)

Hoje eu vou escrever os versos mais loucos que puder.
Versos que falem da vida.
Falem da morte ou da mulher.
Versos que falem dos meus desejos
Dos meus sonhos
Ou mesmo das coisas que estão além de mim.

Por exemplo, posso dizer nessa noite desestrelada:

Minha mãe é uma estrela há milhões de anos-luz
E a minha irmã namora um açougueiro
Que se diverte colecionando imagens sacras
Encontradas nos antiquários de uma rua antiga do Recife.

Posso dizer também que a minha amada
Esqueceu o meu nome
Passando a me chamar de filhinho
E se entrega desvairada
Para compensar o lapso imperdoável.

Posso todas as coisas
Naquela que me torna um deus
Que não tem vergonha de chorar
Por força de um orgasmo
Ou de tristeza pela partida de um amigo.

Que me importa se o amor entre as mulheres
Invade a tela da minha rede
E os pássaros continuam cantando
Nas árvores que cercam meu apartamento?
Que me importa
Se os homens se anulam diante de seus deuses
Enquanto as mulheres assumem o comando do mundo?

Eu não quero escrever versos tristes como Neruda
Porque a tristeza de um poeta
Nunca é a tristeza de um poeta
E sim a tristeza da humanidade
Por não compreender a tristeza dos poetas.

Mas foi em uma noite assim desestrelada
Que vi a morte descontrair a face de meu pai

E a minha mãe segurar seus sapatos
Reclamando por ele haver bebido tanto.
Meu pai ria sobre a pedra
Como costumava rir
Quando chegava tarde da noite
Lembrando as piadas dos amigos.


Ah! Mas eu preciso escrever sobre o amigo
Que atravessou comigo
O inferno e as planícies do diamante noturno.
Que bebeu vinho, comeu pão amargo.
Conquistou a última dama da noite
E escreveu a história da última cafetina.

Posso escrever os versos mais loucos nesta noite
Porque os sóbrios, os santos, estão dormindo.
Pelas ruas perambulam apenas os loucos, os ébrios.
Os poetas, as meretrizes e os apaixonados.

Posso escrever os versos mais loucos nesta noite.
Pois dentro dela uma mulher me espera
E como o marinheiro que passa muito tempo no mar
E se joga ávido nos braços da primeira que encontra
Vou me atirar em seus braços
E deixar que as ondas do seu corpo
Sufoquem-me, e enfim eu desperte
Para viver mais um sonho.

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