terça-feira, 9 de abril de 2019

ESBOÇO DE UMA SERPENTE – Paul Valery

Tradução de Renato Suttana

Entre a árvore, a brisa acalenta
a víbora que hei de vestir;
um sorriso, que o dente espeta
e de apetites vem luzir,
sobre o jardim se arrisca e vaga,
e o meu triângulo de esmeralda
atrai a língua do reptil...
Besta sou, porém besta arguta,
cujo veneno, embora vil,
deixa longe a sábia cicuta!

Suave é este tempo de prazer!
Tremei, mortais, ao meu valor
quando, sem me satisfazer,
bocejo e quebro o meu torpor!
A esplendidez do azul aguça
esta cobra que me rebuça
de uma animal simplicidade:
vinde a mim, ó raça aturdida!
Que estou prestes e decidida,
semelhante à necessidade!

Ó Sol, ó Sol!... Falta estupenda!
Tu que mascaras o morrer,
sob o azul e o ouro de uma tenda
onde as flores vão se acolher;
em meio a mil delícias baças,
tu, o mais feroz dos meus comparsas,
dos meus ardis o mais perfeito,
aos corações não deixas ver
que este universo é só um defeito
na puridade do Não-Ser!

Ó Sol, que soas as matinas
do ser, e em fogos o acompanhas,
que num fatal sono o arrepanhas
todo pintado de campinas,
fautor de fantasmas risíveis
que prendes às coisas visíveis
a presença obscura da alma,
sempre me agradou a mentira
que tu sobre o absoluto espalhas,
rei das sombras tornado pira!

A mim o teu calor brutal,
onde a minha preguiça gelada
vem devanear sobre algum mal
próprio à minha índole enlaçada...
Este amável lugar me seduz
onde cai a carne e produz!
Aqui meu furor amadura;
e eu o aconselho, e eu o refaço,
e me escuto, e em meio aos meus laços
minha meditação murmura...

Ó Vaidade! Causa primeira,
que domina os Céus e os conduz,
de uma voz que já foi a luz
abrindo o cosmo sem fronteira!
Lasso de Seu puro espetáculo,
o próprio Deus rompeu o obstáculo
de tão perfeita eternidade;
ele se fez O que dispersa
em conseqüências Seu começo,
em estrelas Sua Unidade.

O Céu, Seu erro! E o Tempo, a ruína!
E o abismo animal alargado!
Queda naquilo que origina,
fagulha em vez do puro nada!
Mas o primeiro som do Seu Verbo,
EU!... dos astros o mais soberbo
que disse o louco criador –
eu sou!... Eu serei... E ilumino
esse diminuir divino
dos fogos do grão Sedutor!

Radioso objeto de minha ira,
Tu, que amei de um amor flamante,
e que da geena decidiste
conceder o império a este amante,
nos meus escuros Te remira!
Que ao veres Teu reflexo triste,
troféu do meu espelho negro,
tenhas tão funda comoção,
que sobre a argila o Teu ofego
seja um suspiro de aflição!

Em vão moldaste nessa lama
a prole dos fáceis infantes
que dos Teus atos triunfantes
a eterna louvação proclama!
Tão logo secos – e perfeitos,
são da Serpente já desfeitos,
filhos que o Teu criar produz.
Olá, lhes diz, recém-chegados!
Homens que sois, e andais tão nus,
animais brancos e abençoados!

Odeio-vos, que do execrado
à semelhança fostes feitos,
tal como ao Nome que tem criado
esses prodígios imperfeitos!
Eu sou o agente da mudança,
retoco o peito que se afiança,
de um dedo exato e misterioso!
Transformaremos essas obras
e as evasivas, moles cobras
em répteis negros, furiosos!

Meu intelecto inumerável
toca no humano coração
o instrumento de minha raiva,
que foi feito por Tua mão!
E Tua Paternidade alada,
todo aquele que, na estrelada
câmara ela acolha que a afague,
sempre o excesso dos meus assaltos
lhe traga uns longes sobressaltos
que seus propósitos estrague!

Vou e venho, deslizo, enfronho,
desapareço em peito puro!
Houve jamais seio tão duro
onde não possa entrar um sonho?
Quem quer que sejas, não sou esta
complacência que te requesta
a alma, desde que ela se ame ?
Ao fundo sou de seu favor
este inimitável sabor
que de ti em ti se derrame!

Eva! que eu tenho surpreendido
em seus primeiros pensamentos,
o lábio aos hálitos rendido
que das rosas se evolam lentos.
Quão perfeita me apareceu,
de ouro coberto o flanco seu,
sem temor ao sol nem ao homem;
ofertada aos olhos da brisa,
a alma ainda estúpida, tal como
perplexa ante a carne, indecisa.

Oh, massa de beatitude,
és tão bela, prêmio veraz
para toda a solicitude
das almas boas e das más!
Para que aos lábios teus se prendam,
basta que a um sopro teu se rendam!
Tornam-se piores os mais puros,
logo se ferem os mais duros...
Também a mim teus dons encantam,
de quem vampiros se levantam!

Sim! De meu posto entre a folhagem –
réptil que de ave se fingia –,
enquanto a minha pabulagem
uma armadilha te tecia,
eu te bebi, surda beldade!
Prenhe de encanto e claridade,
eu dominava, sem tremer,
fixo o olho em tua lã dourada,
tua nuca obscura e carregada
dos segredos do teu mover!

Presente estive, qual odor
que a alguma idéia corresponda,
cujo fundo, insidioso negror
não se elucida nem se sonda!
Pois eu te inquietava, ó candura,
carne molemente segura,
sem ter de mim nenhum temor,
a tremer em teu esplendor!
Logo eu te tinha, eu te levava,
e tua nuança variava!

(A soberba simplicidade
demanda infinitos cuidares!
Sua transparência de olhares,
tolice, orgulho, felicidade
guardam bem a bela cidade!
Procuremos criar-lhe azares,
e traga o mais raro artifício
ao peito puro o seu motim.
Eis minha força, o meu ofício,
a mim os meios do meu fim!)

Ora, de uma baba ofuscante
fiemos os suaves assaltos
que façam com que Eva, hesitante,
se envolva em vagos sobressaltos.
Que sob a seda da surpresa
palpite a pele dessa presa,
acostumada ao azul puro!...
Mas de gaze nem uma trama,
nem fio invisível, seguro,
além da que meu estilo trama!

E ditos, língua, redourados,
dá-lhe os mais doces que conheças!
Alusões, fábulas, finezas,
e mil silêncios cinzelados,
emprega tudo o que a seduza:
nada que a não bajule e induza
a se perder nas minhas vias,
dócil aos declives que guiam
para o fundo das azuis bacias
os veios que nos céus se criam.

Oh, quanta prosa sem parelha,
quanto espírito não recoso
e lanço ao dédalo sedoso
dessa maravilhosa orelha!
Penso: lá nada é sem proveito,
tudo importa ao suspenso peito!
O triunfo é certo, se o propor,
da alma espreitando algum tesouro,
como uma abelha a alguma flor,
não deixa mais a orelha de ouro!

“Só o que o meu sopro lhe confere,
a ela, é a própria voz divina!
Uma ciência viva fere
o corpo do fruto maduro!
Não ouças o Ser velho e puro
que a breve mordida abomina!
Que, se a boca se põe a sonhar,
a sede que à seiva se atreva,
esta delícia por chegar,
é a eternidade fundente, Eva!”

Ela bebeu minha mensagem,
que tecia um estranho arranjo;
seu olho perdeu algum anjo
por penetrar minha ramagem.
O mais hábil dos animais
que se ri de seres tão dura,
ou pérfida e cheia de males,
é só uma voz entre a verdura!
– Mas Eva muito séria estava
e sob o galho ela a escutava!

“Alma, eu lhe disse, doce pouso
de tanto êxtase condenado,
não sentes este amor sinuoso
que foi por mim ao Pai roubado?
Tenho esta essência celestial
a fins mais doces do que o mel
reservado tão suavemente...
Apanha o fruto... Oh, que se estenda
a tua mão e, ardentemente,
te faça dele uma oferenda!”

Que silêncio – o bater de um cílio!
Que sopro no peito soçobra,
que a árvore mordeu de sua sombra!
O outro brilhava qual pistilo!
Silva, silva! – ele me cantava!
E eu sentia fremir as mil
dobras do meu dorso sutil,
saindo então do meu abrigo:
rolaram atrás do berilo
de minha crista, até o perigo!

Ó gênio! Ó comprida impaciência!
Eis chegado o instante em que um passo
em direção à nova Ciência
fluirá de um fino pé descalço.
Aspira o mármore, o ouro enjambra!
Tremem as bases de sombra e âmbar
na véspera do movimento!...
Ela vacila, a grande urna,
de onde emana o consentimento
dessa aparente taciturna!

Do vivo prazer que antegozes,
belo corpo, cede aos apelos!
Que a sede de metamorfoses
em torno da Árvore dos Zelos
engendre a cadeia de poses!
Vem, sem vires! Ensaia passos
vagos, como ao peso de rosas...
Não penses! Dança nos espaços...
Aqui há causas deliciosas
que bastam ao curso das coisas!...

Oh, quanto é infértil a fruição
que me ofereço, com demência:
de ver tão suave compleição,
fremir em desobediência!...
Breve, emanando seu sustento
de sabedoria e ilusões,
toda a Árvore do Conhecimento,
esguedelhada de visões,
no amplo corpo que investe rumo
ao sol, bebe do sonho o sumo.

Grande Árvore, Sombra das Alturas,
irresistível Árvore de árvores,
que os sucos amáveis procuras
na fragilidade dos mármores,
ó tu, que os labirintos cevas
por onde as constrangidas trevas
se percam no marinho lume
da sempiterna madrugada,
doce perda, brisa ou perfume,
ou pomba já predestinada,

Cantor, secreto bebedor
das mais profundas pedrarias,
berço do réptil sonhador
por quem já Eva tresvaria,
grande Ser, pleno de saber,
que sempre, como por mais ver,
ao alto apelo de teu cimo
cedes, e ao ouro puro os braços
estendes, teus esgalhos baços,
de outra parte, cavando o abismo,

Podes o infindo repelir,
feito só de teu crescimento,
e, da tumba ao ninho, sentir
que és inteiro Conhecimento!
Mas este velho amante do impasse,
de uns secos sóis no inútil ouro,
vem em tua copa enroscar-se –
seus olhos fremem teu tesouro!
Frutos de morte, de incerteza,
de desespero ali sopesa!

Bela serpe, suspensa aos céus,
sibilo, com delicadeza,
ofertando à glória de Deus
o triunfo da minha tristeza...
Basta-me, nos ares tranqüilos,
que a ânsia do amargo fruto os filhos
do barro ponha em desvario...
– A sede que te faz tamanha
até ao Ser exalta a estranha
Toda-Potência do Vazio

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