quinta-feira, 19 de agosto de 2021

BALADA PARA NÃO DORMIR – Lourenço Diaféria

 

Eu não sou criança.
Eu sou de menor.
Criança tem pai, tem mãe, tem irmão.
Eu sou de menor.
De menor tem a vida.
Criança tem livro com figura colorida.
De menor tem o código.
Eu sou de menor.
Criança aparece em anúncio bonito
pedindo brinquedo.
De menor não tem disso.
De menor é no dedo puxando o gatilho.
Criança tem disco do Carequinha
e do Balão Mágico.
Eu sou de menor.

Eu escuto o Afanásio.
Criança tem idade, faz aniversário,
apaga as velinhas.
Eu sou de menor.
Já nasci grande, sem mês e sem ano,
apago velhinhas.
Criança é bobinha.
Eu sou de menor, imponho respeito.
Criança tem gênio.
Eu tenho mania.
Eu sou de menor.
Criança tem clube.
Eu sou de menor.
Eu tenho minha "gang".
Criança tem sítio com pato, galinha,
vaca, bezerro, carneiro, cabrito.
Eu sou de menor.

Eu tenho tudo isso, mas ganho no grito.
Criança mergulha no azul da piscina.
Eu sou de menor.
Eu nado, me afogo, na funda lagoa.
Eu sou de menor.

Se toco na banda,
ninguém me elogia, prestigia.
Se engraxo sapato, ninguém diz: "legal".
Eu sou de menor.
Eu guardo automóvel com cara de anjo,
divido a grana com os caras marmanjos.
Me viro,
me arranjo.
Como pastel,
tomo caldo de cana,
descolo hambúrguer de gente bacana.
Eu sou de menor.

Atravesso vitrô,
eu furo parede,
eu cavo buraco,
eu salto muralha,
eu miro no alvo, derrubo cigarro,
endireito cano de curva espingarda,
sento na borda da escada rolante,
levanto os dois braços na montanha-russa.
Frequento os cinemas da avenida Ipiranga,
e tudo que passa eu já sei de cor.

Eu sou de menor.
Nada tem graça.
Às vezes me escalam para ser criança.
É tarde demais.
Eu sou de menor.
Já morreu o sol da aurora da vida,
saudades não tenho.
Eu sou de menor.

Sou a vidraça quebrada
pela pedra do adulto.
Sou o rosto molhado
com a água da chuva.
Sou fliperama, o barraco, a marquise,
sou dois olhos mordendo a luz da vitrina,
escândalo sou sem a mó do moinho.
Eu sou o trapo enxotado da loja,
o cara suspeito empurrando carrinho.

Sou o discurso jamais realizado.
Sou a face clara da fortuna escondida.
Sou o cão magrela do epular desperdício.
Sou o lado contrário do cabo da faca.
Sou a garrafa vazia jogada no mar,
que volta coberta de restos da morte.
Eu sou a resposta que não espera perguntas.

Aqui estou. Nada mais sinto.
Apenas digo: Cuidado!
Não sou criança. Meu nome é: de menor.

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