sábado, 16 de outubro de 2021

POEMAS – Fernando Abreu

 

ANUNCIAÇÃO

Não é o mal quem te espreita sob a pele
Quando afagas os desvãos do rosto
Explorando a estatuária paciente
Que só no alvo dos dentes se revela

Ritual de mútuo reconhecimento
Onde jamais falsidade se admite
Nenhuma lâmina elide esse momento
Nem estátua de sal corrompe o mito

Aos poucos um sorriso se insinua
Músculos que estalam em degelo
Espelhos secretos que se instalam
Entre a cal da carne e a alma nua

Até que toda a tua face se ilumina
Luz que te reveste feito um manto
Disfarce para os dias transparentes
Blindagem para as noites mais escuras.
........
LINHA DE FRONTEIRA

poemas que não recusam nada
nem mesmo ser um poema
quando isso totemizou-se em tabu
antipoema acima de tudo a não música
quando a fome onívora é teu nome de guerra
puta protéica pós-nuclear
barato definitivo quando nada mais abre porta alguma
porque apenas ficamos sentados nas calçadas
com raiva do sol
partir pra cima do poema desarmado até os dentes
nem sempre a luta é justa
quase nunca se leva a melhor
sobre quem?
esse é o quadro o quadrado
o poema é o ringue não o punch
.......
O ESTADO DAS COISAS

o que se pode esperar de um poema:
que fique de pé e ande sem muletas
mesmo sendo coxo como byron

que não faça ver o pior cego
mesmo sendo um glauco mattoso

que não tenha pena de seus leitores
como dylan thomas
mas que também não seja sádico com eles
como ninguém que eu lembre no momento

que aceite seu lugar no aqui agora
se houver um para ele
e que o tempo faça o resto
se der tempo

o que não se pode esperar de um poema:
lamentações em cima do muro
napalm em embalagem de sorvete
finalizações relâmpago para
comentaristas de UFC
isso até se pode esperar
considerando o “estado geral das coisas”
mas não se deve
ou deveria.

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