segunda-feira, 4 de outubro de 2021

SALVE-SE QUEM PUDER - Cristina Peri Rossi

 

Tradução de Letícia Pilger
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Se fui amarga foi pela pena
O capitão gritou, “salve-se quem puder”
e eu, sem pensar, lancei-me à água
como ávida nadadora,
como se sempre tivesse esperado esse momento,
o momento supremo de solidão
em que nada pesa
nada resta
senão o desejo impostergável de viver;
me lancei à água, é fato, sem olhar para trás.

Se olhasse talvez não tivesse me lançado.
teria vacilado olhando teus grandes olhos tristes.
sinistros remorsos teriam me impedido
de saltar ao espaço
tocar a fria umidade do ar
o noturno sereno
e cair
como recém-nascida
na flutuante superfície do bote
onde tudo haverá de continuar
não se sabe onde.
Se tivesse olhado para trás,
teus grandes olhos tristes
a vela suspendida
os cabos soltos
as câmaras inundadas
como as memórias salgadas do mar.

Se tivesse olhado para trás,
“Salve-se quem puder”
gritava o capitão.

De ter olhado
de ter voltado os olhos
como Eurídice
já não poderia saltar
pertenceria ao passado
ancorada entre as redes do barco, seu capitão,
a ferrugem das cadeiras
os versos que consumíamos nas noites de vigília
tua preguiça de saltar,
tua vingança de correr,
presa entre as famosas trepadeiras dos versos preferidos,
caso tivesse respirado mais o ar salino
nem visto aparecer o sol;
era um caso de vida ou morte.
“Salve-se quem puder”
tinha gritado o capitão,
a vida era uma hipótese de salto,
permanecer, uma morte segura.

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