segunda-feira, 11 de outubro de 2021

O SANGUE DAS HORAS – Cassiano Ricardo

 

Queixei-me de não ter pão
e a noite me disse não.
Mostrei-lhe a varanda nua
e a Noite me trouxe a lua...
Você tem sede, não é?
E a Noite me deu café.

São verdes como a esperança
as horas em que sou triste:
bem que existe não se alcança,
só cansa;
procuro o que não existe.

Se a dúvida me procura,
pondo a cerração do tédio
em minha existência obscura,
bebo a esperança, remédio
para as feridas sem cura...

Que dúbio alvor de camélia
anda lá fora a flutuar?
É a Noite que, de tão velha,
tão velha,
criou cabelos de luar...

A insônia do meu relógio
durante a noite passada
crivou-me o corpo, já enfermo,
de punhaladas sonoras...
Meus olhos são duas feridas
por onde
escorre o sangue das horas.

Entre o passado e o porvir
aqueles peixes de prata
não me deixaram dormir.
Tomei café sem parar.
Bebi treva em goles mudos...
Criei cabelos de luar.

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