sexta-feira, 22 de outubro de 2021

AUTORRETRATO – Nicanor Parra

 

Tradução de Guilherme Gontijo Flores
.........
Considerem, garotos
Esta língua roída pelo câncer:
Sou professor nalguma escola obscura
Perdi a voz nas aulas, entre as classes.
(Depois de tudo ou nada
Quarenta horas semanais me invadem.)
O que acham desta cara esbofeteada?
Verdade, inspira lástima de olhar-me!
E o que dizer deste nariz comido
Pelo cal deste giz mais degradante.

Em matéria de olhos, três metros
Não reconheço nem a própria mãe.
O que me afeta? – Nada.
Eles se arruinaram pelas classes.
A dura luz, o sol,
A venenosa lua miserável.
E tudo, para quê
Para ganhar um pão imperdoável
Duro que nem a cara do burguês.
E com perfume e com sabor de sangue.
Para que nós nascemos como homens
Se uma morte animal por fim nos cabe?

Graças ao excesso de trabalho, às vezes
Vejo formas estranhas se elevarem,
Ouço corridas loucas,
Risos, conversas criminais nos ares.
Observem minhas mãos
Minhas bochechas brancas de cadáver,
Meus cabelos escassos e caducos,
As negras rugas infernais que nascem!
E no entanto eu fui como vocês,
Jovem, dos ideais mais belos, grandes,
Sonhei fundir o cobre
Então limar as faces do diamante:
Aqui estou agora
Por trás desta pousada insuportável
Embrutecido pela cantilena
Dessas quinhentas horas semanais.

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