domingo, 17 de outubro de 2021

POEMAS – Júlio Cortázar

 

Tradução de José Jeronymo Rivera
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POEMA

Amo-te por sobrancelha, por cabelo,
debato-te em corredores branquíssimos
onde se jogam as fontes de luz,
discuto-te a cada nome,
arranco-te com delicadeza de cicatriz.
Vou-te pondo no cabelo
cinzas de relâmpago
e fitas que dormiam à chuva.

Não quero que tenhas uma forma,
que sejas precisamente
o que vem atrás da tua mão,
porque a água,
considera a água e os leões
quando se dissolvem no açúcar da fábula,
e os gestos, essa arquitetura do nada,
acendendo as lâmpadas a meio do encontro.

Todo amanhã é o quadro
onde te invento e te desenho,
disposto a te apagar,
assim não és,
muito menos com esse cabelo liso, esse sorriso.
Busco tua soma, a borda da taça
onde o vinho é também a lua e o espelho,
busco essa linha que faz o homem tremer
numa galeria de museu.
Além do mais te amo, e faz tempo e frio.
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OS AMANTES

Quem os vê andar pela cidade
se todos estão cegos?
Eles se tomam as mãos: algo fala
entre seus dedos, línguas doces
lambem a úmida palma, correm pelas falanges,
e acima a noite está cheia de olhos.

São os amantes, sua ilha flutua à deriva
rumo a mortes na relva, rumo a portos
que se abrem nos lençóis.
Tudo se desordena por entre eles,
tudo encontra seu signo escamoteado;
porém eles nem mesmo sabem
que enquanto rodam em sua amarga arena
há uma pausa na criação do nada
o tigre é um jardim que brinca.

Amanhece nos caminhões de lixo,
começam a sair os cegos,
o ministério abre suas portas.
Os amantes cansados se fitam e se tocam
uma vez mais antes de haurir o dia.

Já estão vestidos, já se vão pela rua.
E só então,
quando estão mortos, quando estão vestidos,
é que a cidade os recupera hipócrita
e lhes impõe os seus deveres cotidianos.

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