quarta-feira, 23 de junho de 2021

BALADA FANTÁSTICA - Wagner Schadeck

1.
Meia-noite. Com o estrondo dos estrados
E tábuas toscas do asqueroso esquife,
Major Vieira, um heráldico patife,
Despertava a cidade com seus brados.

Era assim desde seu sepultamento.
Todas as noites, qual conto poesco,
Ao dar às horas, o defunto fresco
Entoava um tristíssimo lamento.

De dia a multidão seguia aflita
Às igrejas, escolas, pátios ermos;
Entrava-se em contenda nestes termos,
Falando que sua história era maldita:

Matara o próprio pai em pífia aposta
de jogo: era uma rixa de sinuca.
E em casa, ele deixara a mãe maluca
Por agressões sem mínima resposta.

Morrera à míngua; não ganhara a bênção
de defuntos, nem vela, cruz ou missa…
E o que a curiosidade não atiça?
Ora morto, as legendas o compensam…

Em secreta reunião, os potentados
E os religiosos, em acordo unânime,
Precisavam de alguém não pusilânime
A carregar-lhe os restos exumados.

Mas o único disposto a tal serviço,
Tão digno de coragem e de arroubo,
Estava condenado por um roubo,
Seria perdoado então por isso?

Propuseram-lhe na prisão um sério
Acordo pra recomeçar a vida.
Rubião, requestando uma guarida,
Disse que à noite iria ao cemitério.

Na hora marcada, apenas dois coveiros
Esperavam-no junto à sepultura.
E ao chegar, ele sai logo à procura
De marretas, de pás e de ponteiros.

Quebrou-se a lousa, a percutir no beco.
Com unhas grandes e cabelos ruços,
O monstro revirara-se de bruços:
Era um belo e hediondo corpo-seco.

Os coveiros buscavam uma grossa
Corda a içar-lhe a carcaça numa viga;
Sacando-o com um abraço na barriga,
Rubião transportou-o para a carroça.

Com o monstro, Rubião, brandindo o açoite
Contra os cavalos, súbito, na esteira,
Deixou a lua argêntea e a rubra poeira,
Que pintaram pra sempre aquela noite.

2.
No meio do caminho, aperta a brida.
Os cavalos relincham; lhe consome
O estômago uma inesperada fome.
Ignora a náusea, serve-se a comida:

Chá preto, vinho tinto, broa e pesca…
Junto ao monstro, mexendo no despojo,
Não revela, contudo, nenhum nojo,
Sorvendo um prato de coalhada fresca.

Como um morcego, morde-o momentâneo
Calafrio: com febre, a frio sua.
Delirando, ergue os olhos para a lua
Que era como um fosforescente crânio.

Recorda a morte. E assim contabiliza
A travessia trágica por vir.
Com o monstro, se acomoda pra dormir,
Tendo ensopado o pano da camisa.

3.
Despertando, repõe o monstro às costas.
Dessa jornada hedionda em breve é o cabo.
Pra chegar à Garganta do Diabo,
É preciso descer pelas encostas.

Atando a corda então nalgum pinheiro,
Abraça-se no monstro e se pendura.
E a mergulhar no abismo de amargura,
Salta da beira do desfiladeiro.

Como a aranha que em seu engenho borda
O embrulho de um inseto paralítico,
Rubião, posto ao pé de um eucalipto,
Prende aquela carcaça com uma corda.

– Estava livre! Livre era a cidade
Que empestara essa Esfinge de Neurose!
Porém, naquele enxerto, uma simbiose
Selava esta última fatalidade.

Naquela hora Rubião tivera medo.
Com grito horrível de ecoar no poço,
Súbito, um galho quebra-lhe o pescoço,
Espirrando seu sangue no arvoredo.

Desde então é que, em todos os invernos,
O pálido eucalipto registra,
Despindo as cascas secas, a sinistra
E fatídica história dos infernos.

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