quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

SONETOS de Nicolau Tolentino de Almeida

 

CHAVES NA MÃO, MELENA DESGRENHADA

Chaves na mão, melena desgrenhada,
Batendo o pé na casa, a mãe ordena
Que o furtado colchão, fofo e de pena,
A filha o ponha ali ou a criada.

A filha, moça esbelta e aperaltada,
Lhe diz coa doce voz que o ar serena:
- “Sumiu-se-lhe um colchão? É forte pena;
Olhe não fique a casa arruinada...”

- “Tu respondes assim? Tu zombas disto?
Tu cuidas que, por ter pai embarcado,
Já a mãe não tem mãos?” E, dizendo isto,

Arremete-lhe à cara e ao penteado.
Eis senão quando (caso nunca visto!)
Sai-lhe o colchão de dentro do toucado!...
......
A CARNAL TENTAÇÃO DESENFREADA

A carnal tentação desenfreada
Que ao sangue quente alta justiça pede,
Fez com que eu, embrulhando-me na rede
Subisse de uma puta a infame escada.

Ligeiras pulgas saltam de emboscada
Fartando em mim de sangue humano a sede;
Arde a vela pregada na parede,
Já de antigos morrões afogueada.

Saiu da alcova a desgrenhada fúria
Respirando venal sensualidade,
Vil desalinho, sórdida penúria:

Muito pode a pobreza e a porquidade;
Abati as bandeiras à luxúria
Jurei no altar de Vénus castidade.
...........
DEITANDO UM CAVALO À MARGEM

Vai, mísero cavalo lazarento,
Pastar longas campinas livremente;
Não percas tempo, enquanto to consente
De magros cães faminto ajuntamento.

Esta sela, teu único ornamento,
Para sinal de minha dor veemente,
De torto prego ficará pendente,
Despojo inútil do inconstante vento.

Morre em paz; que, em havendo algum dinheiro,
Hei de mandar, em honra de teu nome,
Abrir em negra terra este letreiro:

- "Aqui, piedoso entulho os ossos come
Do mais fiel, mais rápido sendeiro,
Que fora eterno a não morrer de fome"

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