domingo, 20 de fevereiro de 2022

NOITE ESCURA NA RUA BALMES – Joan Margarit

Tradução de Nelson Santander
......
Cumpridas as ameaças e temores
– hoje já todas as ruas levam à velhice –,
passo defronte à clínica em que tu nasceste,
vinte e seis anos atrás, em uma noite
de corredores feridos pela luz.
Aqui foi a tua chegada, pequena e indefesa,
à praia feliz do teu sorriso,
à dificuldade da palavra,
às escolas que não te quiseram,
aos ossos cansados, à calma
cruel e aparente dos corredores
que observam batas brancas silenciosas
com o frio burburinho dos anjos.
Polegares torcidos, o nariz
como bico de pássaro e as desordenadas
linhas da mão: nossas fisionomias
e, ao mesmo tempo, a da síndrome,
como se se tratasse de outra mãe
desconhecida, oculta no jardim.
Longe da beleza e da inteligência:
agora só importa a ternura,
o resto é uma questão de um mundo inóspito
do qual nos é difícil escondermo-nos
em raras rotas de felicidade.

Volto ao jardim escuro, à máquina
de café que me fez companhia
ao longo daquelas madrugadas.
Volto à culpa e ao remorso,
velhos escombros que ainda atravesso.
Como agora respeito aquelas mãos,
sua lucidez recusando o que desejava.
Hoje, voltas contra mim,
me agarram pelo pescoço na velhice,
forçando-me a enfrentar a manhã
em que tua ternura te salvou.
A antiga confusão da felicidade
e um mundo ao redor, nem amigo, nem inimigo:
vejo pessoas passando pelas ruas,
pelas obras, escritórios,
sempre indagando sobre as lágrimas perdidas.

Tu eras a flor, nós, um ramo
e, ao desfolhar-te, o vento
nos embalava desnudos de dor.
Ainda te protejo e ao passar tão perto
do escuro jardim daquele verão,
olho e vejo novamente
a débil luz daquela máquina
de café. Há vinte e seis anos.
E sei que sou feliz, que tive a vida
que deveria merecer. Nunca serei
nada diferente dela, azar e fogo.
Azar, pela vida.
Fogo, pela morte. E não ter nenhum túmulo.

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