domingo, 6 de fevereiro de 2022

A INVENÇÃO DO AMOR – Daniel Filipe

 

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares
à porta dos edifícios públicos
nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado
por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro
que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com caráter de urgência
deixando cair dos ombros
o fardo incômodo da monotonia cotidiana

Um homem e uma mulher que tinham
olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio a descoberta a estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a umidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem e uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
a rádio já falou a TV anuncia
iminente a captura
a polícia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e nas avenidas.
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo
a cada batida na porta fechada para o mundo.
É preciso encontrá-los antes que seja tarde.
Antes que o exemplo frutifique.
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia.

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos.

Chamem as tropas aquarteladas na província.
Convoquem os reservistas os bombeiros
os elementos da defesa passiva
todos.
Decrete-se a lei marcial com todas as consequências
o perigo justifica-o
um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se
no labirinto da cidade.
É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja demasiado tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas
sobretudo protejam as crianças da contaminação
uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lhe recusaram.
Segundo o diretor da sua escola é um pequeno triste
inexplicavelmente dado
aos longos silêncios e aos choros sem razão
aplicado no entanto
respeitador da disciplina
um caso típico de inadaptação congênita
disseram os psicólogos
ainda bem que se revelou a tempo
vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação.
Mas é possível que haja outros.
É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença.
E também que se evite o contágio
com o homem e a mulher
de que fala o cartaz colado
em todas as esquinas da cidade.

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio
das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas.

Procurem os guardas
dos antigos universos concentracionários
precisamos da sua experiência
onde quer que se escondam
ao temor do castigo.

Que todos estejam a postos.
Vigilância é a palavra de ordem.
Atenção ao homem e à mulher de que se fala nos cartazes.
À mais ligeira dúvida não hesitem denunciem.
Telefonem à polícia ao comissariado ao Governo Civil
não precisam de dar o nome e a morada
e garante-se que nenhuma perseguição
será movida
nos casos em que a denúncia
venha a verificar-se falsa.

Organizem em cada bairro
em cada rua em cada prédio
comissões de vigilância.
Está em jogo a cidade o país
a civilização do ocidente
esse homem e essa mulher têm de ser presos
mesmo que para isso tenhamos
de recorrer a medidas mais drásticas

Por decisão governamental
estão suspensas as liberdades individuais
a inviolabilidade do domicílio o habeas corpus
o sigilo da correspondência.
Em qualquer parte da cidade
um homem e uma mulher amam-se ilegalmente
espreitam a rua pelo intervalo das persianas
beijam-se soluçam baixo
e enfrentam a hostilidade noturna
É preciso encontrá-los.
É indispensável descobri-los.
Escutem cuidadosamente a todas as portas antes de bater.
É possível que cantem
mas defendam-se de entender a sua voz.
Alguém que os escutou
deixou cair as armas
e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
e quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
lhe lembravam a infância
campos verdes floridos água simples correndo
a brisa das montanhas.

Foi condenado à morte é evidente.
É preciso evitar um mal maior
mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo
e mesmo assim desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta

Impõe-se sistematizar as buscas.
Não vale a pena procurá-los
nos campos de futebol no silêncio das igrejas
nas boates com orquestra privativa.
Não estarão nunca aí.
Procurem-nos nas ruas suburbanas
onde nada acontece.
A identificação é fácil
onde estiverem estará também pousado sobre a porta
um pássaro desconhecido e admirável
ou florirá na soleira
a mancha vegetal de uma flor luminosa.
Será então aí
engatilhem as armas invadam a casa
disparem à queima roupa
um tiro no coração de cada um
vê-los-ão possivelmente dissolver-se no ar
mas estará completo o esconjuro
e podereis voltar alegremente
para junto dos filhos da mulher.

Mais ai de vós se sentirdes de súbito
o desejo de deixar correr o pranto.
Quer dizer que fostes contagiados.
Que estais também perdidos para nós.
É preciso nesse caso ter coragem
para desfechar na fronte
o tiro indispensável.
Não há outra saída. A cidade o exige
Se um homem de repente interromper as pesquisas
e perguntar quem é e o que faz ali de armas na mão
já sabeis o que tendes a fazer.
Matai-o.
Amigo irmão que seja matai-o.
Mesmo que tenha comido à vossa mesa
e crescido a vosso lado
matai-o.
Talvez que ao enquadrá-lo na mira da espingarda
os seus olhos vos fitem com sobre-humana náusea
e deslizem depois numa tristeza líquida
até ao fim da noite.
Evitai o apelo a prece derradeira
um só golpe mortal misericordioso basta
para impor o silêncio secreto e inviolável

Procurem a mulher o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva.
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de exceção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com caráter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias.
Um velho sem família testemunha e diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro de primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua.
No inquérito oficial atônito afirmou
que o homem e a mulher tinham estrelas na fronte
e caminhavam envoltos numa cortina de música
com gestos naturais alheios.
Crê-se que a situação vai atingir o clímax
e a polícia poderá cumprir o seu dever
.

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