sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

ROMANCEIRO DAS ÁGUAS – Afonso Duarte

 

Água da Altura, límpida e sonora,
Aos desejos do vento num descuido,
Tu és da vida a fonte criadora:
Corpo de nuvens ondeante e fluído.

Por teu peito balsâmico de seivas
Há nos montes fartura reluzente:
Domam-se as terras de lavoura, as leivas,
E ergue-se à flor a túmida semente.

Água da chuva em móbil revoltura
No oceano do ar, no firmamento:
Rega divina a que esse artista, o vento,
Dá forma esculturada, a tecitura.

No nebuloso olimpo concebeste:
E à crusta insenta, ressequida e nua,
Trazes perfumes, o frescor celeste
Dos alvos saibros místicos da Lua.

Euritmias moduladas, feitas
Por cadências de versos diluídos:
Bátegas recortando os meus sentidos
De furtivas palavras liquefeitas.

Água que o ar frio arrasta e desencanta:
A que dá vida, a que renova a planta;
Água que antigamente foi suor
No rochedo e na flor.

E baga do suro da tua fronte
na labuta da vida pelo monte,
Ó cavador cansado!

Respiração carnosa que ao depois
Foi ser chuva e crepúsculo doirado.

Gotas de orvalho,
Irmãzinhas das lágrimas, vós sois
O suor do trabalho.

Respiração dos rios e florestas
E fumo do meu lar;

E pragas das palavras desonestas
Dos pântanos e charcos ao luar;

Respiração de bocas amorosas
E de hálitos das fontes;
E aroma suavíssimo das rosas...

No longe e fluido olhar dos horizontes
Tudo se casa e funde: e é nuvem densa,
- Habitação de lágrimas suspensa.

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