domingo, 17 de maio de 2020

NA PRAIA DE SÃO JOÃO – Conceição Lima

Há séculos que a sua fronte taciturna
desafia a premonição das estrelas -
os rijos movimentos, o solitário remo
a herdada sapiência de pressentir
o cheiro da calema e a mandíbula do tubarão.

Ele que acredita em deus e nos deuses
na bondade dos amuletos, na ciência dos astros
na falível destreza dos seus braços
há séculos que parte com a alvorada
sem ninguém o ver.

Todos os dias aguardamos porém o seu retorno -
a brancura do sal nos músculos retesados
o impulso final
e a canoa implantada no colo da praia.

Em seu rasto perscrutamos ao cair do dia
os limites do mar
Por seu vulto ganham nova pressa
os passos das mulheres
o tilintar das moedas, o pregão das palayês

E se enchem de falas as feiras ao entardecer.

Deste lado, a outra margem do infinito
onde o crepúsculo saúda o regresso
de lá do horizonte, do hemisfério da espuma
da linha oculta no azul espesso
do lugar onde a água só conhece a voz da água.

Nós te aguardamos
mercador lunar, despercebido guerreiro
e ao brilho das escamas que revelas
Pois sem ti a praia seria apenas praia -
o perfil do mar, a queixa do vento
ou a nudez de anónimas pegadas na areia.

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