domingo, 8 de maio de 2022

O MISTÉRIO DOS HOMENS ADORMECIDOS – Tatiana Faia

 

alguns jazem no plaino abandonado
que a morna brisa aquece
no bolso direito das calças a cigarrilha breve
o peito exposto ao ar os braços cruzados
debaixo da nuca
na vulnerabilidade de um gesto
para lá da farda regimental
do fato e gravata de todos os dias
e depois da poeira sobre os sapatos
a respiração tão regular do corpo
é de repente um acidente da sorte
uma dádiva improvável e oportuna
trazendo de volta
a desaceleração do quotidiano

alguns nem estão à espera
de ver o mundo arder
cumprem os dias como se tudo
o que alguma vez lhes tivesse sido dado viver
fosse um dia só
e apenas uma só versão desse dia existisse
a profundidade existe apenas
quando jazem sem cuidado
ao comprido num sofá
num vigésimo segundo andar
num apartamento
de vinte cinco metros quadrados
rodeados por um marulhar de barulhos
por todos os lados e sem que o nada os acosse
um leve sorriso cai sobre os lábios
e um cigarro arde no cinzeiro
enquanto eles deslizam pelo aqueronte
do sono adentro
sem espadas e sem escudos
que lancem a agulha
da resistência ao desconhecido
noite adentro a confiança ou uma promessa
de amantes pode ser algo como isto

alguns regam as plantas cinco minutos antes
e desfazem os nós dos atacadores
e tiram ordeiramente os sapatos
e reconhecem até mesmo
a proximidade da morte
mesmo agora enquanto comem
uma refeição enlatada

enquanto me dou conta de que alguns são
ainda até atléticos e musculares e necessários
e mesmo a sua extrema necessidade
alimenta o desejo de todas as coisas
a precisão de alguns instantes quando
rapazes jogam à bola debaixo
dos olhares de leões
e as cidades são imponentes
e inteligentes e sem perdão
como os aborrecidamente espertos
quartetos de mozart

alguns fecham os olhos e inadvertidamente
deitam abaixo a última parede do mito
aquela que postulava
que a inteligência que permite
ler os dias é uma espera posta à destruição

adormecendo alguns entrelaçam
as mãos sobre o peito
como guerreiros medievais sepultados
em túmulos de pedra
no coração das cidades
e é estelar o seu abandono
como um fragmento
de vidro que se ilumina de repente
na escuridão do ar
e mergulhados profundamente no sono
intuem a profundidade do azul
na obscuridade da noite
as chamas que marcam
as amuradas da noite
as coordenadas do sal na pele
para lá das horas em que escreveram
linhas em que declararam conhecer bem o sal
que se cola à pele vindo das orlas
de certas praias no atlântico

e no entanto alguns persistem e aceleram
para lá do sono em carros que cortam pela noite
demasiado cansados e um pouco decadentes
na fronteira com a extrema incoerência
um pouco para lá do cansaço
para lá do facilmente evidente

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