segunda-feira, 30 de maio de 2022

ONTEM SOBRE ONTEM – André Carneiro

 

Buzino para a pomba gorda
na rua empoeirada.
Cães não se conformam
com as rodas estranhas.
Reclinada no banco
você se queixa de algo,
talvez a salada murcha
ou minha ânsia de pontualidade,
ou dos franceses vindos para o lanche.
Engulo a estrada,
quase ultrapasso o caminhão fantasma,
mas não enfrento a mão errada
na curva rodovia dos atos.
Abro o portão eletrônico,
o carro arrefece a ânsia cega
e descansa as válvulas de aço.
Seus átomos, prótons e nêutrons
sustentam sua matéria sem veias e nervos.
Escadas, fechos e travesseiros
também são feitos com a fórmula
da minha carne primata, de peixe e vertebrado.
0 cenário eu construo,
não importa se gestos são
pensamentos na matéria cinzenta.
Circulo e falo, cada palavra é signo,
sugere algo abstrato ou sólido aparente,
provoca atos da carne ansiosa.
Somos os documentos nas gavetas,
arquivos, fitas magnéticas.
Diante do inquisidor
inventamos as respostas.
Se o espelho devolve outro rosto,
a chave não abre a porta,
o desespero enlouquece com a perda do ontem.
Aqui, agora, duram milionésimos de segundo.
0 calendário imobiliza o passado.
Até o futuro do sonho acordado
mora na memória.
Sinto a batida da veia com o dedo,
o sangue já fugiu do braço,
o beijo caiu no abismo,
o orgasmo é clarão do incêndio,
corre o espermatozoide,
abraça o óvulo, inventa olhos e pernas,
salta para a mãe apertado nos braços,
cresce a cada instante, talvez escreva versos,
rugas, cabelos brancos,
ontem sobre ontem a humanidade inteira.

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