domingo, 8 de maio de 2022

LICOR – Walmir Ayala

 

Dulcíssimas cerejas
no ritual de outubro.
Se eu te mordesse os cílios
e gemesses de espanto
eu diria que o amor
é uma invenção do sonho,
que o corpo com que exerço
esta dança secreta
não tem definição
mas é garça e poeira,
lasca de unha, mancha
de sangue num lençol.

Riríamos do amor
de tal forma alumbrados
que o sonho passaria
e eu veria a verdade
que paira quando tudo
é prazer triturado.

Prazer? Eu sondaria
milímetros de nervos
e pesaria os gestos
as mínimas torções
concluindo com o nada
de uma nuvem traçada
numa folha vadia.
(Nem sequer uma nuvem
distante e verdadeira.)

Se quisesses me ouvir
eu contaria a história
de uma imagem que quis
roubar do que é real
uma gota de mel.

Diria que este furto
sem dimensão exata
seria toda a glória
desta imagem sem voz.
Se quisesses me ouvir
eu te prometeria
logo após dispensar
levando a minha história.

E eu te desejaria
o porto da loucura
para que só falasses
desta opaca memória.

Dulcíssimas cerejas.
Outubro, a névoa, nada
reconstrói o perdido
quando é mito refeito
de improvável delícia.

Dulcíssimas cerejas,
imponderável gesto
suspenso entre o remorso
e a frustrada carícia.

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